domingo, 17 de maio de 2009

uma história de ti

"Porque não há enlace possível, não há". Porque uma vez, visto que era impossível aquela ligação, desistiu de ser mais que enamorada. Analisou as linhas, os traços e fez a arquitetura daquelas formações, de repente, tão distintas (a distinção que para todos os efeitos era um aspecto muito apreciado). Viu muito de repente, e ficou muito surpresa de como aquele pequeno entreposto atrapalhara seus planos e como agora teria que re-programar o final de semana e inventar uma desculpa muito plausível, como dor de cabeça ou doença de tia, por exemplo. Pensava e não cansava de analisar, e então, se conformava. Mas logo em seguida, se inculcava novamente: "não existe possibilidade de toque, não existe". Conforme o passar do tempo, percebeu que precisava de uma explicação mais clara, e não era da desculpa do final de semana que estava falando. Percebeu que, se soubesse o porquê daquele infortúnio, problema estrutural mesmo, poderia enfim, abrir mão daquela moça que, no final das contas, nem era tão inebriante assim. Por mais que soubesse da impossibilidade daquela trama, estava já possuída por seus laços. Sentia medo, mas sabia que já não era dona de seu destino e que seu corpo seguiria andando conforme ordenasse aquela brisa que soprava de seu interior. E aceitou. Meditando durante mais tempo que se propusera a fazer, viu que de nada adiantaria se não comprovasse suas especulações. Foi procurar amostra que equivalesse, que correspondesse em todos os detalhes, que naquele caso acabavam por constituir mais sombra que essência; no entanto era tudo de que dispunha naquele momento. Sua busca sempre fora vã. Nunca chegou a achar alguém que ao menos lembrasse tal figura. Umas eram melhoradas demais, e outras... Outras a faziam parecer uma moça muito direita; e desistiu. Soube ali, de outra coisa importantíssima que deixara escapar novamente: não haveria igual. E como fora tola, como se deixara cegar... E não perdoaria mais deslizes. Dessa vez sabia que faria a coisa certa.
Ainda com a inquietação dentro de si, que latejava e às vezes lhe estremecia, como uma ardência febril, decidiu pôr fim àquela busca insensata. Desafiou-se a si mesmo, e disse que daquele dia em diante não faria mais esforços vãos nem se frustraria em tentativas desastradas. Partiu para o que já deveria ter sido feito desde o inicio. Foi tirar a prova real.
Foi naquela segunda (pois havia de ser segunda-feira) em que o sol voltava a iluminar a cidade ainda molhada de chuva e fazia evaporar as poças e renovar seus poros, que se sentiu pronta. Não afoita, nem ansiosa. Pronta simplesmente, serena porque sabia que era aquela a hora e que nem que quisesse poderia (depois de tanto anos) evitar aquele momento final, a hora de suas vidas. Era possuidora de uma calma assustadora, e flutuava...
Chegou-lhe sem fazer barulho, nem estardalhaço embora fosse aquele o instante pelo qual vivera a esperar. Os olhos vidrados, a boca perplexa, e ficou ali enquanto os segundos absorviam suas gotas de suor, o ar paralisado e quase sem respirar, o corpo todo se inundando de mar, e a alma despedaçando feito vidro trincado. Chegou como doente, moribundo vadio sem rumo, mas estava apesar de tudo, muito lúcida (sempre estivera, por mais que corresse atrás de algo inóspito, sempre soubera que era aquele o propósito de sua vida e botava muita fé naquilo). Como havia planejado, depois de todo o suor ter-lhe corrido pelo corpo e molhado (discretamente) suas vestes e até partes muito escondidas, lembrou do que viera fazer. Enfiou as mãos nos bolsos, e sem desviar o olhar, tirou daquela profundeza um papel bem pequeno aonde parecia estar escrito mais coisas do que ali caberia (talvez fosse ela aquele papel, muito mais coisas do que caberia) e disse numa voz arranhada:”depois de muito correr a te evitar, e padecer por não te achar a única coisa que me resta agora é...". não precisou dizer mais palavra que isso nem nada do que havia no papel porque lá só havia anotado nomes, repetidamente nomes, uns sobre os outros e nas bordas e muitos até inacabados.
era dela aquele ar de "não me toques" e por mais que desprezasse aquilo tanto quanto ensopado de quiabo, sabia que comeria daquele prato e ao final pediria mais. sabia que era aquele o olhar, não muito incisivo é verdade, nem tão enaltecedor, mas sabia que eram aqueles olhos meio desajeitados, meio embriagados, meio cabisbaixos que seriam seu porto. e doía saber disso. doía saber que eram naqueles braços que encontraria abrigo (desabrigado, fugidio, largado e sem compromisso), e que eram daqueles lábios de onde sairiam suas verdades, suas convicções, e doía. pesava-lhe a dor de santa maria. a dor da menina da esquina. a dor de todo o mundo caía-lhe sobre as costas, agora ardendo em fogo, porque, embora soubesse e sentisse toda a dor, não fugia de seu destino. era também maria. feita de sangue, de suor e glória, e sabia que ali estava sua história. e não fugiria. não agora, que bebia de sua beleza, o mais puro ardor, bebia o sabor de sua amante.
e se perderam, porquê a outra (era vadia, era mundana) não lhe negara, e aliás, não negaria a qualquer um que lhe trouxesse flores e lhe cantasse amores.
conhecia aquele solo, porque passara muito tempo a contestar aquela alegria insensata. a chamar de besta aquela menina ingrata, e agora colhia seus frutos. alguns deles sêcos, mas outros muito doces. era aquilo, e não haveria de ser mais nada senão aquilo. um fruto sêco e doce, chupava-lhe o ventre e sentia a ardência e ao mesmo tempo a raiva consumia-lhe o tino, porque não podia chupar mais que aquilo e tomava-se de um tipo de dor prazerosa, e naquele momento só isso lhe bastava.
sentiram, ambas, que tinham vencido o tempo, e zombavam dos mínimos segundos que em algum tempo tinham lhe perturbado a paciência, zombavam dos incrédulos e comemoravam com mais gozo ainda. sabiam que acabaria. ela então, se aquietou mais cedo que a outra. pois carregara um amor mais pesado que a outra. o tempo passou e viu os lençóis planarem sobre seus corpos nus, viu a luz refletir nos seus olhos e sentiu que era a hora. não esperou que lhe dissesse adeus, pois não se prestaria a tamanha humilhação, vestiu-se e arrancou as amarras dos punhos que outrora amarrou. abandonou a sua paz, o seu amor. e nunca mais voltou.
a outra ficou.
ainda debaixo dos lençóis a outra pensou que não era possível que seu amor fosse assim tão insano, e achou toda aquela ligação um belo plano de deus (embora não se prestasse muito à fé), pensou em correr e dizer-lhe de sua sede, mas viu que o amor já cegara aquela pessoa, e que se tivesse sorte, poderia guardá-la em seu peito como uma lembrança boa. sentia que a perdia, mas ao mesmo tempo sentia preguiça de vestir as roupas, sair na rua e correr atrás dela.
quando foi embora, a primeira pensou que tivera feito a coisa certa.
mas o fato é que jamais soubera do quanto seu amor fora recíproco, porque estava tão mirada nas suas mazelas, que pode apenas sentir sua própria dor. esqueceu-se do amor.

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